domingo, 29 de julho de 2007

AMIZADE


Foram duas as vezes que ao longo da minha vida ouvi a expressão “Somos amigos e é como um amigo que te vejo. Não quero confundir as coisas e estragar a nossa amizade.”.
A primeira vez que a ouvi foi há muitos anos, andava eu no secundário, e na minha inocência achei deveras nobre a atitude da catraia. Chamava-se Martinha e que linda me pareceu ela por tanto valor dar á nossa amizade…O.K.…se calhar não era inocente…era mesmo estúpido.
Bem a tentei convencer que a nossa amizade não sofreria abalos, nem sismos de elevada magnitude por darmos uns beijinhos, mas ela insistiu que se o fizéssemos tsunamis e dilúvios inundariam a nossa relação amigável.
Devia ter razão a Martinha…uma miúda tão bonita de certeza que nunca se enganaria.
Orgulhoso caminhava eu diariamente ao lado dela, a caminho da escola e no caminho de retorno para as respectivas casas. Nesta sã convivência semanal escutava as historietas de rapazes com que ela tanto namoriscava e com orgulho pensava em voz bastante baixa “Coitados…Não ganharam a amizade dela e por isso é que ela lhes dá tanta bola! Mal sabem os Don Juan´s que no fundo só são tão íntimos da Martinha porque não são verdadeiros amigos dela como eu.”.
Chegava a ter pena deles.
A nossa amizade não foi interrompida abruptamente mas pouco a pouco foi abastardada pela erosão das correntes da vida, de tal modo que hoje raramente nos encontramos e quando tal acontece é por mero efeito aleatório proporcionado pelo todo-poderoso.
De qualquer maneira, o meu lugar no céu deve estar guardado, porque evitei que um sentimento tão puro como a amizade entre duas pessoas fosse deturpado por parvos caprichos de um miúdo de 13 anos. Mesmo que tal abstenção não chegasse para reservar o meu cativo para a eternidade deve ter me dispensado de prestar provas de admissão se eu quisesse porventura seguir o curso de Teologia.
Cresci e até ao dia que o Déjà vécu (Uma das três modalidades de Déjà vu) me visitou 12 anos depois, fui tendo conhecimento que muitos amigos e amigas se confrontaram com o mesmo problema…A amizade estragava-lhes os planos com a pessoa de quem gostavam a outro nível.
A não ser que a Martinha fosse a primeira mulher a pisar a híbrida fronteira entre a amizade e o amor sem a querer transpor para a terra que faria o meu contentamento, todas as pessoas estudam pelo mesmo manual, um manual antiquíssimo passado de geração em geração, o manual da treta.
-A amizade é no fundo a maior “empata-quecas” que existe no universo. – Dizia me o inconsolável Ruben.
- É arriscado sermos amigos dos homens bonitos… - Confidenciava me a Sílvia.
- Só há uma coisa a fazer…borrada da grande, vou estragar a minha amizade com ela, fazer-lhe algo deveras mau para que ela não veja mais na nossa amizade um impedimento para irmos os dois juntos para a cama. – Propunha o Gonçalo antes de me perguntar quantos anos de cadeia apanharia por pegar fogo a uma casa.
Eu bem lhes tentava explicar que aquela era apenas uma desculpa, e que o que eles deveriam ler nos lábios da outra pessoa era:
-Não me atrais minimamente. Desculpa, mas não há nada em ti que se aproveite e nem por misericórdia por sermos amigos conseguia que se passasse algo entre nós.
Mas será que cabe na cabeça de alguém que uma pessoa vai deixar de andar com outra, de quem gosta e com quem entende que vai ser feliz porque “isso poderia pôr em risco a amizade”?
Então não é a verdadeira amizade que subsiste a tudo?
Deve é subsistir a tudo…que convém.
E quem foi o supra sumo da inteligência emocional que decidiu que o valor da amizade não deveria ceder perante o valor do amor?
Porque não ouço ninguém a dizer-me “ João, eu amo-te do fundo do coração, és tudo para mim, quero passar todos os instantes da minha vida contigo e ser feliz ao teu lado, mas por favor…não me peças a minha amizade…não consigo dar-te mais do que este amor e se fossemos amigos tenho a certeza que íamos estragar tudo.”?
Muitas mulheres depois, bastante inimigas como convém, e já com 25 anos volto a ouvir a mesma expressão…amigos sim…mais do que isso seria estupidez porque iríamos estragar tudo.
Outra Marta…
Mas dessa vez outra atitude…
A sabedoria popular, sempre tão útil quando precisamos de concluir uma brilhante argumentação com uma verdade que por ser tão cegamente transmitida se torna quase universal, deveria ter pensado este caso.
Assim se algum dia, uma mulher me voltar a dizer a já sobejamente conhecida passagem do manual da treta limitar-me-ia a dizer com ar triunfal:
-Minha querida, já diz o sábio povo que nestas coisas nunca se engana:
Amigos, amigos, ir para a cama contigo todas as noites á parte.